Mais de um mês após a Justiça conceder regime de semiliberdade a uma indígena Kokama que denunciou ter sido violentada enquanto estava custodiada em uma delegacia do interior do Amazonas, a mulher permanece isolada em um abrigo em Manaus. Segundo a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), a transferência para a moradia já disponibilizada pelo Governo do Estado depende do laudo e supervisão da Funai, que ainda não se manifestou.
Na quarta-feira, 10 de setembro de 2025, a indígena esteve na sede da DPE-AM com os defensores públicos Theo Costa (Núcleo de Atendimento Prisional – NAP) e Roger Moreira (Defensoria Especializada em Direitos Humanos). Ela reiterou que precisa ir para a nova casa para reunir a família, acolher a irmã (27) em tratamento contra um câncer agressivo, além da mãe, padrasto e dois filhos (13 e quase 3 anos), que não vê desde a transferência de Santo Antônio do Içá para Manaus.
“Minha irmã passou por uma cirurgia delicada e está precisando da minha ajuda. Minha mãe e meus filhos estão chegando também”, disse a indígena, pedindo decisão imediata para conviver com o núcleo familiar.
“Decisão concedida pela metade”, diz Defensoria
O defensor Theo Costa avalia que a decisão que assegurou a semiliberdade acabou “sendo utilizada contra ela”. A DPE-AM havia solicitado prisão domiciliar e obteve parecer favorável do Ministério Público, mas o juízo da Vara de Execuções Penais (VEP) readequou para o regime especial de semiliberdade previsto no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), o qual deve ser supervisionado pela Funai.
Sem que a fundação fosse previamente chamada para organizar a execução, o laudo não saiu e a indígena segue na casa-abrigo, mesmo com as chaves da residênciaconcedida pelo Estado.
“Isso gera não só transtornos, mas uma violação institucional por omissões processuais que se repetem desde o início”, disse Costa. A DPE-AM informou ao juízo, em 2 de setembro, a situação da irmã e a disponibilidade da casa, pedindo a transferência — ainda sem decisão.
Família chega hoje; defensor custeou parte das passagens
Sem apoio efetivo de órgãos federais de proteção, a família da indígena chega a Manaus nesta sexta-feira (12). Parte dos custos foi bancada pelo defensor Roger Moreira, que afirmou ter tentado resolver a situação “pelos meios normais”, mas esbarrou em burocracias.
“Ela deixou um bebê em amamentação quando sofreu uma das violências mais cruéis. A base socioemocional da família é essencial para o recomeço”, disse Moreira.
A irmã, que removeu útero e reto em cirurgia recente e recebeu alta no domingo (7), está em um quarto de hotel no Centro, utilizando sondas e necessitando de cuidados. Após a reunião na DPE-AM, os defensores e uma representante da Sejusc foram visitá-la.
“Sem apoio”: cobranças à Funai
A DPE-AM relata ter acionado órgãos federais diante de ameaças à família em Santo Antônio do Içá. Houve ofício do Defensor Público-Geral, Rafael Barbosa, ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania e à Funai, solicitando avaliação de risco e transferência para Manaus.
Segundo a indígena, a Funai prometeu auxiliar, mas não viabilizou a vinda dos familiares nem visitou a irmã em convalescença. “A Funai disse que ia trazer minha família, mas não trouxe… Hoje eu arco com gastos de alimentação e aluguel da minha irmã, mesmo tendo uma casaconcedida pelo Estado. Preciso de uma decisão definitiva”, declarou.
Entenda o caso
A Kokama, 29 anos, cumpriu mais de nove meses de pena na 53ª DIP de Santo Antônio do Içá, onde, segundo a DPE-AM, sofreu graves violações de direitos humanos, incluindo tortura e estupros sucessivosatribuídos a policiais militares e a um guarda municipal.
O Gaeco/MP-AM ofereceu denúncias contra cinco PMs e um guarda municipal; laudos periciais apontaram vestígios de violência sexual e lesões compatíveis com os relatos da vítima.
A delegacia já havia sido reconhecida pela própria Justiça local como inadequada para custodiar mulheres, mas a transferência para Manaus só ocorreu após quase 10 meses, agravando o quadro físico e emocional. A indígena desenvolveu TEPT e necessitou de cirurgia para tratar hemorroida em estágio crítico.
Detida em 11 de novembro de 2022, sem audiência de custódia e sem comunicação imediata à Defensoria, a DPE-AM pediu prisão domiciliar desde dezembro de 2022. Em 28 de agosto de 2023, já em Manaus, a Defensoria teve ciência formal do estupro e intensificou a atuação.
No mês passado, a instituição protocolou pedido de indulto humanitário ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com alternativa de comutação de pena.