Um caso envolvendo uma mulher indígena de 29 anos, que denunciou ter sido estuprada por quatro policiais militares dentro da delegacia de Santo Antônio do Içá (a 880 quilômetros de Manaus) e teve o pedido de prisão domiciliar negado, expõe o grave descaso com a garantia da integridade física de mulheres encarceradas no interior do Amazonas. O caso veio à tona somente depois de uma ação pedindo R$ 500 mil de indenização do Estado.
A mulher foi presa em dezembro de 2022, após a mulher ser agredida fisicamente pelo companheiro, o que levou os vizinhos a acionarem a polícia. Durante a ocorrência, foi constatado que havia um mandado de prisão em nome dela por conta de uma investigação de homicídio. No momento da prisão, a mulher estava com seu filho, um recém-nascido de apenas 20 dias, que ficou na delegacia dividindo espaço junto com outros presos do sexo masculino. Ela foi transferida à Manaus somente em agosto de 2023.
Para o defensor público responsável pelo caso, Theo Eduardo Costa, isso representa uma fragilidade do Estado em garantir que os direitos da mulher sejam respeitados no encarceramento.
O defensor explicou que, para as presas, até os serviços mais básicos são mais difíceis no interior: “Muitas vezes, o acesso à própria alimentação, o acesso a vestuário, o acesso a medicamentos, o acesso à saúde dessas mulheres que estão encarceradas no interior do Estado é extremamente precário”.
Em razão desses problemas, Theo Costa solicitou que essa prisão fosse revertida em prisão domiciliar.
“A gente solicitou, no processo de execução penal dela, que fosse revertida a prisão dela para prisão domiciliar, como ela já se encontrava antes de ser presa lá em 2022”. O pedido foi negado.
Danos psicológicos
Ao chegar a Manaus em agosto de 2023, foi percebido que a mulher tinha comportamento diferente das demais encarceradas, foi quando o defensor Theo Costa solicitou atendimento à vítima.
Desde então, a Defensoria realizou 65 atendimentos à mulher. Uma das medidas foi localizar a família da vítima, que temia represálias por parte dos policiais lotados no interior. Ela passou a ter contato com seus familiares nos dias em que os presos residentes da capital têm visitas.
MPAM deu parecer contrário à prisão domiciliar
Questionado sobre qual teria sido a decisão judicial em relação à prisão domiciliar, o defensor esclareceu que o pedido foi feito, mas teve parecer contrário do MPAM em 2023 e a decisão judicial, de abril deste ano, manteve o encarceramento da mulher.
Theo Costa destacou que o pedido foi feito como principal medida de reparo ao que a mulher passou cumprindo pena de forma irregular e como mínima compensação ao dano sofrido: “Isso tem amparo em decisões e normativas de cortes interamericanos, de direitos humanos”.
Theo Costa disse que a Defensoria Pública continuará acompanhando o caso, mas que é necessário que a Justiça atue quanto aos agentes envolvidos no estupro da vítima.
O Ministério Público informou que o parecer foi baseado no âmbito do cumprimento do crime de homicídio cometido por ela em Manaus, dentro da execução criminal.
“Na ocasião, baseado na legislação, o MPAM indeferiu a prisão domiciliar, mas, no mesmo parecer, o promotor de Justiça da Execução Criminal solicitou ao juiz de execução que fossem apurados possíveis crimes praticados contra a vítima no município. O juiz oficiou a Comarca de Santo Antônio do Içá, pedindo explicações e informações sobre o andamento do inquérito policial e possível processo que apurou ou apura do crime narrado pela investigada”, diz nos autos do processo.
A PMAM instaurou procedimento para apurar a conduta dos quatro policiais envolvidos. Como não foi instaurado inquérito civil em Santo Antônio do Içá, o MPAM, por determinação da procuradora-geral Leda Mara Albuquerque, instaurou um PIC (Procedimento Investigatório Criminal), que é um instrumento utilizado pelo Ministério Público para apurar a ocorrência de infrações penais, com o objetivo de reunir elementos que embasam a decisão sobre o oferecimento ou não de denúncia.
Para onde vai a mulher que é vítima do Estado?
A professora doutora em processos socioculturais da Amazônia, Ivânia Vieira, criticou a violência contra a mulher dentro das estruturas que deveriam protegê-las: “O que acontece quando os policiais são os agressores? Onde a vítima pode buscar apoio?”.
A ativista também questionou onde estava o Estado durante esse tempo em que o caso não ganhou conhecimento público.
A ativista também criticou que a estrutura das delegacias não seja adequada para receber o público feminino e as coloquem em situações irregulares. Ela disse que as garantias do Estado Democrático de Direito não estão presentes no Amazonas mais profundo, o interior.
Vieira defendeu que esses crimes brutais precisam ser revelados e que as estruturas do Estado sejam cobradas por melhorias. “É preciso cobrar sistematicamente atitudes reais das autoridades para que a vida e a dignidade das mulheres deixem de ser ‘uma questão banal’ ignorada ou motivo de chacota por parte de representantes dos poderes habituados a violência de gênero”.
A coordenadora do Fórum Permanente de Mulheres, Marília Freire, criticou a atuação do Estado na garantia de direitos humanos à presa. “O Estado falha na pessoa de seus agentes e deve ser responsabilizado civilmente e os agentes criminalmente responsabilizados. É inaceitável que pessoas que estejam sob custódia do Estado sofram qualquer tipo de violação de direitos humanos, como é esse caso”.
Ela ressaltou que, ao não terem condições estruturais de receber presas mulheres, outras opções deveriam ser tomadas para evitar que os grupos femininos sejam vítimas desses crimes.
“O Estado tem que se responsabilizar por todas as pessoas sob sua custódia. Se a uma mulher não é garantido sua segurança e integridade física, o Estado tem que remanejá-la para estabelecimento adequado imediatamente ou utilizar medidas alternativas à prisão como prisão domiciliar ou tornozeleira eletrônica”, informou.
Fonte: Acrítica