O relatório Bancando a extinção: bancos e investidores como sócios no desmatamento, uma investigação realizada pelo Greenpeace Brasil ao longo de mais de um ano e divulgada nesta segunda-feira (8), revela que bancos públicos e privados, nacionais e internacionais, destinaram mais de R$ 43 milhões em crédito rural, entre 2018 e 2023, para 12 propriedades rurais envolvidas com diversas irregularidades socioambientais na Amazônia.
Um dos casos é o da Fazenda Arizona, em Rio Branco (AC), que tem metade de sua área sobreposta a uma Floresta Pública Não Destinada de domínio estadual e que acumulou um desmatamento de 420 hectares (cerca de 420 campos de futebol) entre 2016 e 2022. Apesar disso, o proprietário obteve crédito rural de dois bancos públicos brasileiros: um contrato de R$1,4 milhão do Banco do Brasil para bovinocultura e outros 9 contratos com o Banco da Amazônia (Basa), tendo recebido um total de mais de R$ 16,7 milhões em crédito rural dentro do período analisado. Como mostra o relatório, não houve um impedimento para a concessão dos 10 contratos à Fazenda Arizona, porque o local não foi embargado pelo Ibama e, segundo a exigência estabelecida no Manual de Crédito Rural, um impedimento à concessão do crédito se aplica apenas para imóveis com embargo, demonstrando como brechas nas regras atuais da política deste tipo de crédito contribuem para que o financiamento chegue a desmatadores e grileiros.
Ainda que o Manual do Crédito Rural previsse o impedimento da concessão do financiamento para propriedades com áreas embargadas, o relatório do Greenpeace Brasil encontrou 798 imóveis com embargo do Ibama associados a desmatamento e que receberam o crédito rural (podendo conter embargos pré ou pós concessão de crédito rural).
Este é o caso da Fazenda Cachoeira Dourada, no município de Novo Repartimento (PA), multada pelo Ibama por desmatamento ilegal em 2016 e embargada pelo órgão federal. Apesar dessas irregularidades, o proprietário da fazenda, Ancelmo Magri Pedroso, conseguiu firmar dois contratos de financiamento com o Banco da Amazônia em 2019 de mais de R$ 885 mil, sendo um para compra de gado e outro para custear a manutenção e a criação de bovinos. Tais empréstimos também possibilitaram que Pedroso fizesse transações comerciais entre a sua fazenda e uma outra, a Fazenda Palestina, no município de Pacajá (PA), entre 2020 e 2021. O negócio envolveu o repasse de 436 cabeças de gado da fazenda Cachoeira Dourada para a Fazenda Palestina para engorda. Na sequência, a Fazenda Palestina repassou 2.831 cabeças de gado para o frigorífico JBS em uma transação realizada entre julho de 2020 e fevereiro de 2022.
O crédito rural é uma modalidade de crédito destinada a produtores rurais no Brasil, sendo operado por bancos públicos e privados, nacionais e internacionais, desde que autorizados pelo Banco Central do Brasil. Parte dos recursos deste crédito recebe subsídio do governo para oferecer juros mais baixos e prazos mais estendidos aos beneficiários.
A política do crédito rural é importante instrumento da política agrícola brasileira, e deveria incentivar melhorias na agricultura a fim de reduzir seu impacto ambiental. Porém, como demonstra o relatório do Greenpeace Brasil, por causa de fragilidades nas regras que regem essa política e da falta de monitoramento dos créditos concedidos, os bancos não separam agricultores de criminosos ambientais, permitindo que o dinheiro também chegue a pessoas que destroem a Amazônia, suas florestas, seus povos e sua biodiversidade.
“O financiamento a crimes que derrubam a floresta e expandem a produção agropecuária na Amazônia não se limita a recursos de origens clandestinas. Parte é oferecida por grandes bancos públicos e privados que, sem controle adequado, direcionam recursos para atividades envolvidas com irregularidades”, explica Cristiane Mazzetti, porta-voz do Greenpeace Brasil.
Os dez principais operadores do crédito rural nos estados da Amazônia Legal são: Banco do Brasil, Caixa Econômica, Banco da Amazônia, Banco do Nordeste, Bradesco, Banco John Deere, Santander, Sicredi, Sicoob e Itaú.
No entanto, 70% dos valores contratados no período analisado pelo Greenpeace Brasil são de apenas 3 bancos públicos:
1- Banco do Brasil (BB);
2- Caixa Econômica Federal;
3- Banco da Amazônia (Basa)
O Banco do Brasil desponta como o maior operador de crédito rural na Amazônia, sendo responsável por 44% de todos os contratos.
Fazendas em terras indígenas financiadas com crédito rural
O estudo também identificou que, entre 2018 e 2022 e considerando o Bioma Amazônia, obtiveram crédito rural: 10.074 propriedades com sobreposição a unidades de conservação; 24 propriedades sobrepostas a terras indígenas; 21.692 imóveis com sobreposição a florestas públicas não destinadas (FPND); e 29.502 propriedades com desmatamento no período analisado. Os alertas recaem principalmente sobre:
- 41 imóveis encontrados em áreas de proteção integral, onde não deve haver nenhuma atividade econômica, segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC);
- 24 imóveis inseridos em 7 territórios indígenas, como os Kayabi (MT), Urubu Branco (MT), Amanayé (PA), Rio Omerê (RO), Araribóia (MA), Alto Rio Guamá (PA) e os Uru-Eu-Wau-Wau (RO), áreas estas protegidas e destinadas pela Constituição Federal exclusivamente aos povos indígenas.
Um dos casos mais escandalosos está na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, cujo aumento do desmatamento nos últimos anos tem sido seguido pelo avanço de pastagens no território.
Imagens inéditas feitas em sobrevoos do Greenpeace Brasil e que integram o “Bancando a extinção” mostram diversas fazendas sobrepostas à TI Uru-Eu-Wau-Wau, em flagrante de ilegalidade, que receberam financiamento por meio do crédito rural. Ainda existem operações de crédito com propriedades sobrepostas ao território que estão ativas e devem ser imediatamente canceladas.
Ainda na TI Uru-Eu-Wau-Wau, o Greenpeace identificou que o fazendeiro Benedito Chaves Leitão possui duas propriedades ilegalmente sobrepostas ao território: a Fazenda Nosso Canto e uma outra, identificada como “Lotes 54, 56 e 58”, distantes apenas 2.4 km uma da outra. Em 2018, Chaves Leitão obteve crédito rural para “manutenção/criação de animais” para a propriedade “Lotes 54, 56 e 58”, que não tinha sinais de pecuária. Já a vizinha Fazenda Nosso Canto contava com áreas de pastagem e o estudo levanta a possibilidade de que os recursos foram aplicados nela. A investigação mostra que, da Fazenda Nosso Canto, o fazendeiro negociou ao menos 10 remessas de gado com a JBS entre 2019 e 2022.
DEMANDA POR MUDANÇAS: reforma do sistema financeiro
As instituições financeiras e reguladoras do sistema financeiro têm um papel fundamental para impedir que recursos sejam direcionados a atividades que resultam na destruição ambiental e violação de direitos humanos. Em razão dessa responsabilidade, Mazzetti alerta que tanto os reguladores quanto as instituições financeiras precisam aumentar o rigor de suas regras para a concessão de crédito para atividades agropecuárias, assim como revisar as operações vigentes e cancelar ou suspender aquelas identificadas com irregularidades socioambientais.
“O estudo evidencia a necessidade de maior rigor no cumprimento das normas vigentes e uma série de melhorias nos critérios socioambientais para a concessão de crédito rural, a fim de cobrir as lacunas na regulação do crédito rural. É preciso colocar em prática, por exemplo, a exigência de monitoramento contínuo das propriedades financiadas e a verificação da legalidade do desmatamento se este for identificado no imóvel rural, vide que apenas uma pequena porcentagem do desmatamento ilegal é embargada”, adverte Mazzetti.
Em um nível global, também é urgente que o sistema financeiro seja imediata e drasticamente reformado para se adequar à meta de limitar o aquecimento do planeta em 1,5 ºC (meta do Acordo de Paris) e atender ao Marco Global de Biodiversidade (pacto global firmado em 2022, durante a COP15 de Biodiversidade, que inclui o sistema financeiro em 4 de suas metas para frear a perda de biodiversidade).
“As nações precisam tomar medidas eficazes para garantir o alinhamento de todos os fluxos financeiros aos compromissos estabelecidos no Acordo de Paris e no Marco Global da Biodiversidade. Não temos mais tempo a perder, o dinheiro precisa parar de fluir para fazendas e empresas que destroem o meio ambiente e fomentam as múltiplas crises que vivemos”, diz Mazzetti.