“O canto tikuna é muito espiritual, você escreve com a alma”

EL PAÍS – Cantora amazonense Djuena Tikuna é uma das vozes do Projeto Sonora Brasil, do Sesc, que levará grupos de mulheres e povos originários em turnê por todo o país até 2020

Depois de eliminar bolsas de estudo e pesquisa e enxugar o orçamento de universidades federais, a tesoura do Governo federal ameaça o chamado “Sistema S” —conjunto de instituições administradas por federações e confederações patronais voltadas à pesquisa e assistências técnica e social—, do qual faz parte o Sesc (Serviço Social do Comércio). Apesar de estar no ponto de mira, o Sesc realiza a 22ª edição do Sonora Brasil, maior projeto brasileiro de circulação musical, com temática que valoriza a produção de mulheres e dos povos originários do país, em um momento em que as políticas indígenas converteram-se em bomba relógio (desde o início do Governo de Jair Bolsonaro).

“O canto tikuna é muito espiritual, você escreve com a alma” A bomba-relógio das demarcações indígenas no Governo Bolsonaro

Historicamente, o Sonora abre espaço para as produções que não se encaixam na indústria fonográfica. “E música brasileira de viés autoral, não comercial. Queremos conquistar o público para olhar para a música que vem do tradicional”, explica a EL PAÍS Marcos Rego, gerente de cultura do Departamento Nacional do SESC. O projeto já havia contado com manifestações da cultura de raiz em edições anteriores, mas ela nunca havia sido trabalhada como conceito, como acontece nesta (2019/2020). Perguntado sobre a decisão de dar protagonismo às mulheres e aos indígenas na atual conjuntura política, Rego afirma que trata-se de uma “feliz coincidência”. Ele conta que, no ano passado, na comemoração de 20 anos do projeto, os organizadores decidiram abordar, “unanimemente”, duas questões.

“A primeira foi a música dos povos originários e a dívida histórica que o país tem por não reconhecer sua diversidade étnica e cultural, por não olhar para eles. A outra foi a produção feminina, que é invisibilizada. Queremos jogar luz sobre isso, mas sem mediadores. Quem conta é a própria mulher, é o próprio indígena. A ideia é ouvir a voz deles, e ter artistas que falam em primeira pessoa de suas vivências neste momento é algo valioso”, diz Rego.

Uma dessas vozes é a de Djuena Tikuna, cantora amazonense que fez história em 2017 ao tornar-se a primeira indígena a protagonizar um espetáculo musical no Teatro Amazonas (Manaus), nos mais de 120 anos de existência do local. Ela, que também realizou a primeira Mostra de Música Indígena do seu Estado, explica a importância de participar do Sonora: “A música é um instrumento de força para lutar pelos direitos indígenas. A programação do Projeto Sonora vem no melhor momento, quando precisamos nos unir e nos fortalecer cada vez mais. Nosso canto, nossa cultura precisa ser mostrada. Nossa arma é nossa arte”.

Uma das bandeiras de Djuena —nome que significa “a onça que pula o rio”— é a defesa do resgate e preservação dos idiomas originários do país. Todas as suas composições estão na língua tikuna. “Quando o bebê está na barriga, as mães já cantam. Toda hora tem o canto tikuna, seja nas canções de ninar ou nos rituais.  É um canto muito espiritual, cada nota tem um significado. É como escrever, você escreve com a alma”, diz ela.  Para a cantora, os espetáculos —que começam nas regiões Norte e Nordeste, neste ano, e que em 2020 percorrerão os resto do país— são uma oportunidade não só de aproximar a população não indígena de sua cultura, mas também de conscientizar seus “parentes de outras etnias”. “A mensagem que precisamos passar como mulheres indígenas e artistas é que precisamos nos unir mais para lutar por nossos direitos. Somos diversos, mas não somos diferentes. E quanto mais nos atacarem, mais continuaremos de pé”, afirma.

Riscos

Marcos Rego afirma que “não houve hesitação ou autocensura” quando, em janeiro, bateram o martelo sobre a temática do Sonora. “Quando em janeiro explodiram os números de feminicídio [o primeiro mês do ano registrou mais de 100 assassinatos, de acordo com a OMS], por exemplo, tivemos certeza de que temos que dar palco mesmo para as vozes dessas mulheres e suas questões. O Sesc, na sua totalidade, abraçou isso como importante. A instituição quer falar, não estamos forçando a barra nem chamando para provocação, mas queremos dar luz a esses dois nichos”.

No entanto, ele se diz preocupado com as ameaças de mudanças nas políticas culturais e o corte de recursos para a área no país. “Se não estivesse preocupado, seria louco. Diferente do que dizem, não existe dinheiro sobrando, tudo é bem planejado. Os recursos são findos, o dinheiro é contado. Mas não nos paralisamos e continuamos trabalhando”.

Outra das preocupações de Rego diz respeito à recepção que os grupos indígenas terão na turnê pelo país. Ele conta que, no segundo semestre do ano passado, os produtores do Sesc notaram uma reação diferente do público à programação do Palco Giratório, iniciativa que há 15 anos difunde a arte cênica brasileira e que aborda diversos temas, alguns deles considerados “polêmicos”, como aqueles relacionados à sexualidade. “No ano passado, começamos a notar uma tensão por parte dos espectadores”, lembra. Agora, ele aposta na “potência do encontro de culturas” para atenuar essas tensões. “Nosso objetivo é fazer uma mediação positiva entre o público e os artistas que estão produzindo cultura popular tradicional no Brasil”, diz, esperançoso.