247 – Pode-se ler, no inciso 1 do artigo 120 da Lei de Execução Penal, o motivo pelo qual Luiz Inácio Lula da Silva tinha direito líquido e certo de deixar a cela de Curitiba, viajar a São Bernardo e despedir-se de Genivaldo Inácio da Silva, o irmão mais velho, metalúrgico, morto de câncer, aos 79 anos.
Diz o texto que “os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios” poderão “obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão”.
O direito de Lula — e de todo brasileiro e brasileira nesta situação — está lá, com a clareza nem sempre tão explícita dos textos que em nosso país protegem a liberdade humana, esse bem único da existência, que só não é maior do que a própria vida.
Mesmo assim, Lula não foi autorizado a comparecer ao funeral do irmão primogênito, um metalúrgico grandalhão, jeito acanhado, 79 anos.
Frei Chico, o mais conhecido dos sete irmãos de Lula, foi um militante do Partido Comunista que chegou a ser preso e torturado durante o regime militar.
A história que marcou Vavá é outra. Entrou para os anais da Justiça do Espetáculo em 2007, quando uma equipe da Polícia Federal entrou em sua casa procurando provas para sustentar uma denúncia — inteiramente fajuta, soube-se depois — de que tentara faturar algum com a venda de favores a empresários interessados em se aproximar do governo do irmão caçula. Numa manhã traumática, quando Lula se encontrava em viagem pela Asia, os policiais reviraram sua residência modesta no ABC paulista, mexeram nos computadores dos filhos, colocaram objetos na calçada, humilhando a família e chamando a atenção dos vizinhos.
A título de comparação histórica, não custa lembrar que a LEP sequer estava em vigor em 1980. Sob a ditadura militar instituída em 64, Lula encontrava-se preso no DOPS paulista em companhia de outros líderes das greves operárias que sacudiam o país desde o final da década anterior.
Mesmo assim, naquele país que se mobilizava para ascender a um degrau superior de civilização, Lula foi liberado para acompanhar o enterro da mãe. Barbas e cabelos negros, rosto ensopado, infantilizado como todos ficam diante da morte de uma pessoa querida, sua presença na cerimônia constitui um retrato inesquecível de dor e também de esperança.
Trinta e oito anos depois, a imagem é outra — a prisão de Curitiba. O momento histórico também mudou.
Nesta madrugada, confirmou-se a notícia que todos adivinhavam. Era só uma questão de tempo, mas a decisão só não foi divulgada antes, para não dar na vista, não desmoralizar demais pela vergonha, não machucar de pela covardia.
Num espetáculo que se repete, a notícia era que os direitos de Lula não seriam respeitados — mais uma vez.
Já havia sido assim na condenação sem prova pela Lava Jato. A cena se repetiu em abril de 2018, no 6 a 5 do STF que, com ajuda de um twitter intimidador do comandante do Exército, impediu a restauração do transito em julgado, princípio constitucional que teria impedido sua prisão. Quem sabe, ainda teria permitido sua presença na campanha presidencial.
Também foi assim em julho, quando o desembargador Rogério Favretto concedeu um habeas corpus pela soltura imediata de Lula. Fundamentada na melhor jurispruência, com apoio personagens insuspeitos do direito, inclusive mestres de Sérgio Moro, a decisão acabou bloqueada numa operação de guerra, na qual o plantão da Polícia Federal, a Vara de Curitiba e o TRF-4 se mobilizaram para garantir que a porta da prisão permanecesse fechada — embora Lula já tivesse sido orientado a fazer as malas porque sua saída era iminente.
A decisão, sobre o enterro de Vavá, é uma reincidência, mas envolve envolve direitos mais elementares. Não se tratava, a rigor, de garantir a liberdade de Lula, mesmo que por algumas horas. Muito menos que isso.
Como se o mais popular dos presidentes tivesse sido transformado numa fera selvagem detida num zoológico, o pedido equivalia a tentar exercer o direito de espreguiçar-se à frente do público, antes de retornar calmamente para o fundo da jaula. Sem mostrar as garras, é claro.
Lula só pediu isso. Sob escolta, como determina o artigo 120, queria encarar pela última vez o rosto do irmão, naquele esforço íntimo de tentar gravar com força na memória uma imagem que se quer preservar para sempre. Ao saber da morte de Vavá, lamentou que não tivera a oportunidade de despedir-se dele em vida.
Numa família de oito irmãos na qual onde um pai ausente tratava os filhos com violência e pouco caso, o primogênito Vavá teve um papel importante na defesa dos menores, inclusive Lula, o caçula que ninguém podia imaginar que se tornaria quem é.
Num depoimento a jornalista Denise Paraná, autora de “Lula, o filho do Brasil”, Vavá falou da vida de criança : “nunca tivemos infância. Nunca tivemos um brinquedo. Você não tinha um sapato para por, não podia jogar futebol”. Ele fala de Lula no tom de quem sabe o lugar de cada um na construção de seu destino, inclusive no esforço para uma formação profissional, anterior a tudo que veio depois: “o único que conseguiu estudar no Senai foi o Lula. Fez o Senai trabalhando,” disse Vavá a Denise Paraná, em tom de reconhecimento pelo esforço do irmão mais novo.
Você pode procurar os motivos alegados para impedir Lula — mais uma vez — de exercer um direito assegurado por lei. A primeira alegação é de “indisponibilidade de de transporte aéreo em tempo hábil”, argumentou o delegado Luciano Flores de Lima. Ele também falou em “ausência de policiais disponíveis para assegurar a ordem pública” e “perturbações a tranquilidade da cerimonia fúnebre pelo aparato necessário para levar Lula”. Alinhada, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, sob o governo Dória, também disse que não podia dar garantias quanto a manutenção da ordem.
A lista é longa mas ali não se encontra a verdadeira razão. Ela é inconfessável. Como se pode aprender a partir de uma observação do professor Emir Sader, no programa Boa Noite 247, ontem.
O Brasil de Bolsonaro e da Lava Jato não pode conviver com a liberdade de Lula — seja de forma permanente, seja por um dia, uma hora, um minuto. Nem que seja para permitir que um ex-presidente da República compareça ao enterro do irmão mais velho.
Esta é a lição do dia. Alguma dúvida?