Depois de voar 10 metros e aterrissar de cabeça numa pedra assim que perdeu o controle dos esquis nos Alpes franceses, naquele trágico 29 de dezembro de 2013, Michael Schumacher, o heptacampeão mundial de Fórmula 1, mergulhou num profundo silêncio — e sumiu dos olhos do mundo. Sua imagem pública começou a esvanecer-se naquele domingo mesmo, quando o neurocirurgião Stephan Chabardès se preparava para o último dia de trabalho antes das férias.
O plantão começara às 8 horas. Depois da primeira cirurgia da manhã, por volta das 10h30, Chabardès estava em sua sala pondo a correspondência em dia quando foi interrompido por um residente. “Um paciente em estado grave acaba de chegar ao hospital e provavelmente terá de ser operado com urgência”, contou o jovem médico, sem revelar a identidade do acidentado.
O dr. Chabardès continuou lendo seu correio. Um pouco depois, o mesmo residente retornou e perguntou a Chabardès se ele poderia ir até a sala onde o exame acabara de ser feito, para dar seu parecer. “Só quando cheguei à sala vi que era Michael Schumacher”, disse Chabardès a VEJA.
A queda, ainda que Schumacher usasse capacete, provocara um traumatismo craniano grave. Seu cérebro estava tomado por hematomas e edemas difusos. O ex-piloto se encontrava entre a vida e a morte e precisava passar por uma cirurgia o mais rápido possível. Chabardès operou-o.
O médico só voltou para casa tarde da noite, para avisar à mulher e aos filhos que não poderia sair de férias no dia seguinte.
A família de Schumacher decidira convocar uma coletiva de imprensa na segunda-feira de manhã para satisfazer a curiosidade mundial. A central telefônica do hospital havia entrado em colapso por causa do volume de chamadas de repórteres e fãs ávidos por notícias. O estado de Michael precisava ser esclarecido.
O piloto estava pior do que se dizia. Na entrevista, informou-se que o impacto ocorrera no lado direito da cabeça, que a cirurgia tentara eliminar o hematoma, mas haviam sido encontradas lesões bilaterais e o alemão estava em coma induzido. Ficaria seis meses em coma.
E nunca mais o mundo saberia exatamente como estava Schumacher, em razão de uma espetacular muralha de silêncio construída em torno do piloto — a começar pelo lugar em que vive.
Não poderia haver local mais adequado para garantir sua privacidade.
Quando o vento do sul atravessa os Alpes, na fronteira entre a Suíça e a França, sua força forma ondas no Lago Léman que quebram numa pequena praia particular da cidade de Gland. Pela janela de seu quarto, Schumacher talvez possa ouvir o som do vai e vem das águas e do choque das embarcações ancoradas no píer em frente à casa.
É lá que vive o ex-piloto, nesse castelo no estilo Floresta Negra que ele próprio mandou erguer no terreno de mais de 14 hectares na calma cidade suíça de 13 000 habitantes. Desde então, o lugar se tornou a fortaleza impenetrável onde ele, a família e poucos amigos escondem do mundo as sequelas da tragédia.
La Réserve, como é chamada a área onde se situa a propriedade, já pertenceu a um primo do imperador Napoleão III e durante a II Guerra Mundial foi um dos locais mais protegidos da Suíça. O país neutro, por precaução, mandou construir bunkers ao longo de sua fronteira.
Além disso, uma linha de blocos de concreto conhecida como “Toblerone” — uma alusão ao famoso chocolate — atravessava todo o flanco oeste da propriedade para defender o território nacional de uma eventual invasão de tanques. Na estrada que leva até a casa de Schumacher, ainda hoje é possível ver no asfalto os locais onde explosivos eram colocados para mandar pelos ares a ligação entre Genebra e Lausanne, se necessário.
Antes de se aposentar definitivamente das pistas, em 2012, Schumacher, hoje com 47 anos, escolheu Gland para construir seu paraíso particular, onde ele — sempre obcecado por proteger sua vida privada — poderia viver longe do assédio da imprensa e dos fãs.
As isenções fiscais da Suíça também contaram, é claro, mas Schumi evitou fazer como a maioria dos pilotos de Fórmula 1, que escolhe viver em Monte Carlo, um paraíso fiscal mais adequado ao estilo ostentação da categoria.
Quando ele sofreu o acidente na estação de esqui de Méribel, nos Alpes Franceses, a discrição dos vizinhos suíços — implacável e incontornável — tornou-se ainda mais necessária para garantir a paz que a família Schumacher buscava em Gland.
Desde o acidente, a imprensa internacional tentou de tudo para descobrir o real estado de saúde do ex-piloto. Durante um tempo, paparazzi armados com teleobjetivas ancoraram barcos alugados no Lago Léman na esperança de capturar alguma imagem dele. Drones e helicópteros foram usados, em vão. Até hoje, as câmeras de segurança instaladas entre as árvores vez ou outra flagram alguém tentando entrar no terreno dos Schumacher.
Na manhã do dia do acidente, o telefone de Sabine Kehm tocou. Do outro lado da linha, um jornalista francês queria confirmar a informação e saber mais detalhes sobre o estado de Schumacher. A empresária e porta-voz do recordista de títulos na F1 estava na casa dos pais, no interior da Alemanha, passando as festas de fim de ano. Ela não sabia de nada.
Quando conseguiu se livrar do repórter, telefonou para Schumacher, mas ninguém atendeu. Sabine, que trabalha com Schumi desde 1999, achou isso normal. Afinal, seu chefe estava de férias. “Como eu tinha visto muitos acidentes durante a carreira dele, pensei: ‘O.k., talvez ele tenha tido um acidente, mas não deve ser tão grave’. Pensei que ele terminaria vendo que eu havia tentado falar com ele e me ligaria de volta”, conta Sabine.
Schumacher nunca retornaria o telefonema. Sabine chegou no dia seguinte a Grenoble, para cujo hospital o ex-piloto fora levado. Quando o viu deitado, inconsciente e ligado a aparelhos, deu-se conta da gravidade do ocorrido. Chorou abraçada à mulher de Schumacher, Corinna, e a seus filhos, Mick e Gina Maria. Quase três anos depois, em entrevista a VEJA, ela ainda se emociona ao lembrar a cena.
No hospital em Grenoble, após enxugar as lágrimas, Sabine se recompôs e vestiu novamente a camisa de porta-voz do ex-piloto. Era preciso organizar e filtrar as informações sobre Schumacher. O interesse da imprensa era justificado. O alemão é um dos maiores ídolos do automobilismo. Mas houve excessos que entristeceram a família.
Sua morte chegou a ser anunciada por alguns veículos. Por isso, cada vez que algo de novo é publicado sobre ele, entra em ação o clã Schumacher, formado por sua família e um reduzido grupo de amigos. Eles desmentem e processam os responsáveis pelos rumores.
O último comunicado oficial sobre a saúde do ex-piloto data de setembro de 2014, quando ele foi levado de um hospital em Lausanne para casa. Sua condição havia “progredido”, mas ainda faltava um “longo caminho a percorrer” para a recuperação. Três meses antes, em junho daquele ano, ele saíra do coma, o que permitiu que fosse transferido de Grenoble para Lausanne.
Hoje, a única certeza que se tem a respeito de Schumacher é que ele não consegue caminhar sozinho nem com ajuda. A informação foi dada no mês passado pelo advogado da família em Hamburgo, na Alemanha, em audiência do processo que os Schumacher estão movendo contra a revista Bunte, que publicou que o heptacampeão estaria andando e erguendo o braço.
“Os que falam não conhecem a situação e os que conhecem não falarão nada”, disse a VEJA Jean Todt, ex-chefe de Schumacher na Ferrari e um dos amigos mais próximos do campeão. O mantra é repetido por Sabine e pelo médico francês Gérard Saillant. Os três visitam o ex-piloto regularmente e são sua face pública desde o acidente em Méribel.
“Felizmente, Schumacher não está morto, mas sua vida e a de sua família mudaram. Ele é bastante reservado, e nós consideramos que sua vida privada deve ser respeitada. Schumacher não é mais um personagem público”, diz Todt. “Ele é fechado, sim. Mas quando se é próximo dele é uma companhia agradável e demonstra uma amizade da qual nunca tive do que reclamar”, diz Felipe Massa, seu companheiro na Ferrari em 2006.
A saúde financeira de Schumacher também foi alvo de especulação da imprensa mundial.
Em julho de 2014, o tabloide inglês The Mirror informou que Corinna pusera à venda o reluzente jato Falcon 2000 EX cinza, matrícula M-IKEL. O valor seria de 20 milhões de euros e serviria para pagar as despesas com o tratamento do marido. Talvez seja mais correto deduzir que o jato foi vendido pelo simples fato de que não é mais usado.
Schumacher é um homem rico. A empresa especializada em grandes fortunas Wealth-X estima que o alemão tenha amealhado cerca de 800 milhões de dólares ao longo da carreira. O valor coloca o ex-piloto de F1 na segunda posição entre os atletas mais bem pagos de todos os tempos, atrás apenas do golfista americano Tiger Woods. Mesmo com a perda de vários contratos, Schumacher ainda recebe patrocínio da Mercedes-Benz, por exemplo.
Na saúde e no dinheiro, o clã mantém-se discreto. “Quando conhecemos o lado ostentação da F1, dos pilotos com suas namoradinhas, é impressionante ver a atenção que Schumacher dá e sempre deu, mesmo antes do acidente, ao núcleo familiar”, disse a VEJA o ortopedista Gérard Saillant, uma das raras pessoas, além da mulher, dos filhos e de seletos funcionários, que frequentam a casa na La Réserve. (Saillant é o médico a cuja habilidade o Brasil deve a conquista da Copa do Mundo de 2002. Foi ele quem operou o joelho de Ronaldo Fenômeno dois anos antes. O atacante lhe dedicou os dois gols que marcou na final contra os alemães.)
Saillant foi apresentado a Schumacher por Todt. Há cerca de dez anos tornaram-se mais íntimos, quando o médico e o dirigente buscavam fundos para a criação de um instituto dedicado ao estudo do cérebro e da medula. Schumacher foi um dos primeiros a contribuir com dinheiro e como garoto-propaganda, aceitando um papel de corredor de bigas em Astérix nos Jogos Olímpicos — no filme, as tribunas do estádio onde se dá a disputa estão cobertas com banners onde se lê ICM, a sigla do instituto, em números romanos. Até hoje, o ex-piloto é seu segundo maior doador privado. Com os olhos voltados para o chão, Saillant reconhece que é uma ironia que o amigo que ajudou a fundar o ICM enfrente agora as sequelas de um traumatismo craniano.
Muitos torcedores brasileiros não simpatizam com Schumacher, pois acham que ele reagiu friamente à morte de Ayrton Senna nas pistas, em 1994, e ainda se beneficiou da tragédia para vencer o campeonato naquele ano. O alemão, afinal, nem sequer foi ao enterro. Sabine Kehm conta uma história diferente. “Michael sempre admirou muito Senna. Ele me disse que ficou devastado com sua morte, mas não queria chorar em público apenas para aparecer na imprensa.” No ano seguinte, longe dos holofotes, Schumacher e Corinna foram ao Cemitério do Morumbi, em São Paulo. De pé, com a cabeça baixa diante do túmulo de Senna, o alemão que caiu em prantos quando igualou o recorde de vitórias do brasileiro prestou sua homenagem particular. Em silêncio, em privado, como sempre guiou sua vida — antes e depois do acidente que o condenou a uma reclusa e misteriosa existência à beira de um lago suíço.Veja.com