Mas a liberdade parece não ter valor nenhum. O Tribunal pode até negar o “habeas corpus”. O que não pode é não julgar porque isso é uma gravíssima ofensa a direito fundamental, pois isso implica em negar a prestação jurisdicional. Supressão de instância é o …, é uma ova
No Tribunal de Justiça do Amazonas, alguns desembargadores (poucos, felizmente), ouviram falar em “supressão de instância”. E, talvez porque a sonoridade da expressão lhes calou bem nos ouvidos, passaram a usá-la a mancheias e de forma totalmente equivocada.
Seria uma simples questão técnica a ser superada pelos meios adequados se não fosse de profunda gravidade no que diz respeito a direito fundamental da cidadania, qual seja a própria liberdade do ser humano. Por isso, e só por isso, trago-a para fora de autos processuais, ao fito de que os poucos que me leem se possam inteirar do imbróglio que seria ridículo se não carregasse em si a gravidade a que aludi.
É indispensável uma explicação preliminar para os leigos. O judiciário brasileiro é organizado em instâncias, que nada mais são que os graus em que cada um dos seus órgãos exerce suas funções.
Aqui no Amazonas, por exemplo, temos apenas duas instâncias: a primeira que é onde atuam os juízes de direito, tanto os do interior quanto os da capital, e a segunda, que é precisamente o Tribunal de Justiça. Em termos bem práticos: se não me conformo com a decisão prolatada por um juiz de direito, o recurso que dela venha a ser interposto será dirigido ao Tribunal que, como instância superior, poderá mantê-la ou reforma-la. É isso, só isso e singelamente isso.
Pois muito que bem, meu raro leitor. Admita que um juiz de direito (de Manaus, de Ipixuna, de Itacoatiara, de qualquer comarca do Estado) decretou uma prisão preventiva. Admita, ainda, que o advogado de que se valeu a família do infeliz chegue à conclusão de que a prisão é incabível, ou por desnecessidade ou por ilegalidade.
Resulta intuitivo que, para desfazer a ordem de prisão, o nosso bom causídico não tem outro organismo para recorrer que não seja o Tribunal de Justiça, já que o bispo não está autorizado a lançar suas bênçãos nessa área específica.
Ora, vejam só. Há alguns dias, assinei, com outros colegas de escritório, uma petição de “habeas corpus” dirigida ao Tribunal de Justiça, por via da qual buscávamos precisamente desfazer um decreto de prisão preventiva firmado por um juiz de direito de uma comarca do interior.
Eis senão quando, apenas quarenta e oito horas depois, a colega me transmite a notícia: o “habeas corpus” foi rejeitado liminarmente. Por quê? – perguntei eu na minha santa ignorância. E vem então a explicação científica: porque o desembargador relator entendeu que houve supressão de instância.
Fui ler o despacho de indeferimento. Sua Excelência, invocando suprimentos da mais alta qualidade, aos quais não faltaram o Código de Hamurabi, a Lei das XII Tábuas nem as Pandectas, foi taxativo: o “habeas corpus” não pode ser conhecido (isso significa “apreciado”) já que o Impetrante suprimiu uma instância, pois não pediu ao juiz de direito a revogação da prisão preventiva. Assim mesmo.
Já vão bem longe os meus tempos de Faculdade de Direito. Foi difícil, portanto, relembrar a que aula eu faltei e justamente na qual o meu professor de direito processual penal teria ensinado tamanha preciosidade. Depois, serenados os ânimos, conclui sem qualquer dúvida: o professor Xavier de Albuquerque, ministro do Supremo Tribunal Federal, não pode ter ensinado tamanho absurdo. E é claro que não ensinou porque isso não existe em lei nenhuma, sobre ser uma desbragada ofensa à lógica mais elementar.
Vamos esmiuçar o quiproquó. Um juiz de direito recebe de um delegado ou de um promotor o pedido de prisão preventiva. Com os elementos de que dispõe, o magistrado se convence de que a medida é necessária (quase nunca é, mas deixa pra lá) e a decreta. Pronto. Está no mundo uma ordem, que se expressa através de mandado judicial e por meio da qual a polícia está autorizada a recolher o cidadão ao xadrez.
No “entendimento supressivo” (chamemo-lo assim), o advogado do preso (efetivo ou em potencial) não pode pedir diretamente ao Tribunal que desfaça a ordem. Antes, tem que se dirigir ao próprio juiz, pedindo que ele dê uma de bonzinho e revogue a determinação que acaba de expedir. Que que é isso, minha gente?, diria o bom locutor de futebol. Claro que nada impede que esse tal pedido seja feito. O importante é saber que ninguém está obrigado a fazê-lo e, não o formular, não implica em supressão de instância, nem aqui, nem na China.
Conclusão: tecnicamente, corretamente, exclusivamente, a única coisa a providenciar é nada mais nada menos que a petição de “habeas corpus” dirigida ao Tribunal de Justiça, única instância imediatamente superior e capaz de desfazer a ordem de prisão. Em outras palavras: entre o juiz de direito e o Tribunal de Justiça não existe (pelo menos que seja do meu conhecimento) nenhuma outra instância, de forma que só o segundo pode reformar uma decisão tomada por aquele.
Mas a liberdade parece não ter valor nenhum. O Tribunal pode até negar o “habeas corpus”. O que não pode é não julgar porque isso é uma gravíssima ofensa a direito fundamental, pois isso implica em negar a prestação jurisdicional. Supressão de instância é o …, é uma ova.