A cidadania exige esclarecimentos. Mais que esclarecimentos, exige que o ministro se redima perante ela, renegando o verdadeiro tapa que lhe desferiu na face
Em dezembro passado, lá se foram quarenta e sete anos do dia em que recebi o diploma de bacharel em direito na velha Faculdade da Praça dos Remédios. Ingressando imediatamente na advocacia, nessa profissão já vi coisas do arco da velha.
A confusão entre “habeas corpus” e “Corpus Christi” vira coisa de somenos quando comparada a episódios que dizem respeito a direitos fundamentais da pessoa humana.
Na verdade, olhando em retrospectiva, sinto-me quase como o personagem da canção que nasceu há dez mil anos e “não há nada neste mundo” que ele não saiba demais.
Nada de saber jurídico elevado que eu sei perfeitamente conhecer minhas limitações. Falo do dia a dia dos fóruns, auditórios e escritório, onde pulsa a realidade da vida, com seus dramas e tragicomédias, principalmente no âmbito da advocacia criminal.
Nesse quase palco, já vi um juiz transformar em ameaça de prisão, com algemas e tudo, a simples advertência a uma testemunha de que ela tem a obrigação de falar a verdade.
E pude ver o pavor estampado nos olhos da senhora que recebeu a ignorância, incapaz ela de compreender a razão da grosseria, já que ali estava para cumprir um dever de cidadania, prestando serviço ao judiciário.
Pude sentir o drama de uma senhora humilde que me relatava, cheia de dor, o encarceramento de seu filho, jovem de dezoito anos, acusado da prática de furto.
Por mais didático que eu tenha procurado ser, era-lhe difícil entender os mecanismos do sistema, cego e surdo para a vida em si mesma, e muito mais interessado no cumprimento de regras formais de conduta, como se o direito pudesse ser criado em laboratórios, longe da realidade.
Já cansada, a mãe me fez a ponderação quase desesperada: “Mas, doutor (é assim que nos tratam, não sei por que), não existe um tal de horoscópio que coloca as pessoas em liberdade?”. Que sublime terna ignorância!
Já vi, também, processos por crime de homicídio que dormiram em berço esplêndido por mais de vinte anos e foram alcançados pela prescrição.
Já conheci promotor que tinha caderneta muito bem cuidada em que mantinha anotações detalhadas das condenações criminais ocorridas nos processos em que atuava.
E era com orgulho que ele proclamava pelos corredores forenses o número total de anos de cadeia que havia “conseguido” para os réus.
Da mesma forma, já vi advogado que se comprazia em dizer “eu ganhei o júri”, como se o julgamento de um crime doloso contra a vida fosse uma disputa acadêmica destinada a premir oradores ou artistas.
Na verdade, o infeliz não consegue compreender que o tribunal popular é, com certeza, o espaço mais democrático do mundo judicial, mas os dramas que nele se desenrolam hão de ser encarados com respeito reverencial, precisamente porque cuidam de morte e liberdade.
Tudo isso já vi.
Mas nunca imaginei que estaria vivo para assistir pela televisão ao espetáculo degradante proporcionado pelo ministro Joaquim Barbosa, em plena presidência do Supremo Tribunal Federal.
Logo onde, no Supremo que já conheceu Nelson Hungria, Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva! E ainda mais na presidência. Que senhor destemperado, para dizer o mínimo!
Muito já se falou sobre o comportamento de Sua Excelência, com menção especial para o antológico texto do professor Odenildo Sena, publicado aqui neste espaço. Seria, portanto, de deixar pra lá.
Acontece, porém, que a coisa foi tão brutal e ofensiva que, para não pecar pela omissão, deliberei emitir a mais humilde das opiniões, como sói ser a minha.
Que o ministro Joaquim Barbosa tem uma trajetória brilhante é indiscutível. Negro e pobre numa sociedade racista e discriminatória, conquistou loas acadêmicas que só lhe fazem engrandecer a carreira.
O que se não pode admitir é que, alçando ao mais alto posto do judiciário brasileiro, Sua Excelência resolva, de lá e através do cargo, dar vazão ao complexo que lhe há de ter ficado pelas inúmeras injustiças que a discriminação lhe fez ao longo da vida.
Se quer ser grosseiro e impertinente, o ministro pode perfeitamente guardar essas qualidades para demonstrá-las particularmente aos amigos que, de alguma forma, deve cultivar.
Não posso, todavia, condescender quando ele chama de “chicaneiro” um juiz do tribunal supremo do meu país. Condescendesse eu com isso e estaria aceitando, implicitamente, que minha pátria não merece respeito e que não passamos de um amontoado de bugres.
Como isso não é verdade, nem de longe, resta-me quedar estarrecido de ver alguém manchar a toga, enlameando-a com os borrifos da mais vulgar grosseria e da mais estúpida falta de educação doméstica.
A cidadania exige esclarecimentos. Mais que esclarecimentos, exige que o ministro se redima perante ela, renegando o verdadeiro tapa que lhe desferiu na face.
Mas é preciso coragem para fazê-lo.